Instituto Nacional de Economia Circular – INEC

Indústria têxtil e economia circular: desafios e caminhos para a transformação 

 A transformação do setor têxtil começa no redesign: repensar o produto desde a origem é o primeiro passo para unir valor, regeneração e competitividade 

 

Por Raíssa Pinati* 


A indústria têxtil é um dos setores mais dinâmicos e emblemáticos do mundo moderno. A moda sempre contou histórias – de estilo, comportamento, desejo. Hoje, ela precisa contar outra história: a da responsabilidade e da inovação. 

O setor está numa encruzilhada. Ele movimenta trilhões de dólares e emprega cerca de 75 milhões de pessoas, mas se tornou símbolo do consumo rápido, do chamado fast fashion. 

Além do impacto ambiental – marcado pelo alto consumo de água e energia, emissão de gases de efeito estufa e descarte massivo de resíduos -, a indústria têxtil também carrega um alto custo humano: condições de trabalho precárias, desigualdades de raça e gênero e até mesmo a exploração do trabalho infantil ainda são questões recorrentes nesse setor. 


É nesse cenário que a economia circular aparece como uma alternativa ética e sustentável, afinal, é preciso pensar além da reciclagem e reutilização. Sendo assim, o conceito circular traz uma reflexão em torno da viabilidade de modelos de negócio, design de produtos e cadeias de valor, alinhando sustentabilidade com competitividade. 

Este artigo traça um panorama dos desafios e oportunidades da transformação circular na moda, mostrando práticas já existentes, barreiras a superar e caminhos possíveis para um setor têxtil regenerativo. 

No setor têxtil, apenas 6,9% dos materiais consumidos retornam como materiais secundários. (Foto: Matt York | AP)

 

Panorama quantitativo do Brasil: o gargalo residencial e urbano

Domicílios brasileiros geram cerca de 4 milhões de toneladas de resíduos têxteis por ano (roupas, calçados, couro) – segundo a S2F Partners. 

Cada residência descarta, em média, 44 kg de roupas e calçados por ano. 

Globalmente, o setor têxtil responde por 2% a 8% das emissões de gases de efeito estufa e consome 215 trilhões de litros de água por ano – o equivalente a 86 milhões de piscinas olímpicas. 

Apenas 0,3% das matérias-primas usadas no setor vêm de fontes recicladas, evidenciando a dependência quase total de insumos virgens. 


Segundo o Circularity Gap Report 2025, apenas 6,9% dos materiais consumidos retornam como materiais secundários. O sistema continua predominantemente linear. 

 

Ilhas de circularidade: o que já acontece 

Mesmo diante de um cenário tão linear, já existem experiências mostrando que tendência e sustentabilidade podem caminhar juntas. 

Reciclagem e reaproveitamento:
no Brasil, a reciclagem de fibras ainda é limitada. Mas para mostrar que é possível, as cooperativas, oficinas sociais e startups de insumos têxteis reciclados vêm ganhando espaço, ainda que em pequena escala. 

Logística reversa e coleta:
algumas marcas experimentam programas de devolução de roupas usadas, muitas vezes mais como ação de marketing e responsabilidade social do que como sistemas de reinserção de materiais. Eventos como a Febratex conseguiram alcançar 71,5% de circularidade dos resíduos produzidos, provando que, quando há controle, o alto nível de circularidade é possível. 

Novos modelos de negócio:
plataformas de revenda, aluguel e assinatura, como a Roupateca, ainda atuam em nichos. Upcycling transforma peças descartadas em produtos com valor agregado, explorado por marcas de nicho e artistas. 

 

Legislação europeia como referência

Na União Europeia, empresas têxteis passam a ser responsabilizadas pelo ciclo completo de seus produtos. Um dos pilares centrais dessa estratégia é a Diretiva-Quadro dos Resíduos, que estabelece a obrigatoriedade de coleta seletiva de têxteis e exige a implementação de sistemas de Responsabilidade Estendida do Produtor (EPR). 

O foco está em estender a vida útil dos produtos, promover a reciclagem e reduzir o desperdício ao longo de toda a cadeia de valor. 

 

Desafios para escalar a circularidade

Transformar boas práticas em um novo paradigma exige enfrentar barreiras estruturais: 

1 – Políticas públicas ainda incipientes 

 

  • Diferente de setores como embalagens, a moda carece de regras que obriguem metas de circularidade ou retorno de produtos. 

  • No Brasil, o PL 270/2022 propõe um sistema nacional para resíduos têxteis pós-consumo – promissor no papel, mas desafiador na prática.


2 – Infraestrutura insuficiente 

 

  • Rede nacional de coleta, triagem e processamento ainda é fragmentada e limitada.


3 – Cultura de consumo descartável 

 

  • Preço baixo e novidade rápida ainda vencem consciência ambiental. Fast fashion mantém o modelo linear “rentável” no curto prazo.


4 – Falta de rastreabilidade 

 

  • Sem informações confiáveis sobre composição, origem e destino, cadeias circulares não se consolidam. Blockchain e passaportes digitais ainda engatinham.


5 – Materiais complexos e tecnologia limitada 

 

  • Misturas de fibras (algodão + poliéster, elastano, zíperes) dificultam a reciclagem. 

  • Reciclagem química ainda pouco difundida ou economicamente inviável.


6 – Capacitação e governança 

 

  • Empresas e cooperativas carecem de conhecimento técnico e gestão. A informalidade no setor de reciclagem ainda é alta. 

Caminhos para a transformação 

Algumas alavancas podem acelerar mudanças: 

1 – Eco-design e design thinking:

  • projetar para desmontagem, modularidade e reparo; 
  • usar fibras monomateriais ou recicláveis;

  • reduzir sobras com técnicas “zero waste cut”. 

2 – Transformar resíduos em inovação:

  • manufatura aditiva é uma técnica que permite fabricar estruturas complexas, reduzir desperdícios e personalizar produtos em escala; 

  • biomateriais brasileiros, como o BeLEAF da Nova Kaeru, substituem couro animal, feito a partir da folha da planta comumente chamada de “orelha-de-elefante” (Alocasia Macrorrhiza ou planta similar); 

  • moda inteligente por meio de tecidos tecnológicos, provadores virtuais, aluguel de roupas e reparo como status cultural. 
     

3 – Rastreabilidade e certificação:

  • passaportes digitais e blockchain garantem transparência da cadeia de valor. 

4 – Modelos de negócio circulares:

  • aluguel, revenda, assinatura, conserto e recompra internalizam custos e captam valor residual; 

  • parcerias com redes de logística reversa ajudam a escalar.


5 – Políticas públicas e incentivos:

  • apoiar mecanismos para adoção da responsabilidade Estendida do Produtor; 

  • criação de linhas de financiamento, créditos fiscais ou subsídios para empresas que implementem circularidade (reaproveitamento de sobras, coleta, reciclagem, transparência); 

  • normas brasileiras (NBR ISO 59004, 59010 e 59020) trazem diretrizes para facilitar a adoção real da economia circular no Brasil.


6 – Redes de coleta e triagem local:

  • descentralizar pontos de coleta, treinar cooperativas e logística regional eficiente. 

7 – Educação e mobilização do consumidor:

  • campanhas de conscientização focadas não apenas em “consumo sustentável” mas em educar o consumidor sobre os desafios climáticos, e como escolhas pensadas em durabilidade, reparo, reutilização e entrega consciente são caminhos para a mudança; 

  • incentivar a reparação, customização e extensão de vida útil como norma cultural, não nicho.


8 – Inovação colaborativa:

  • criar laboratórios de moda circular, hubs de pesquisa, parcerias entre startups, universidades, marcas e recicladores. 

As bases para o progresso 

O desafio da circularidade não é só tecnológico ou conceitual – é estrutural, envolvendo finanças, cultura, regulação e governança. A transformação exige mudanças sociais, comportamentais e a responsabilização de indústrias e comércio.


Exemplos de coleta, upcycling e startups têxteis provam que a transformação é viável, ainda que frágil. O que separa quem muda do que permanece no mesmo lugar é a coragem política, articulação de ecossistemas e visão de longo prazo.


Apoiado por especialistas de relevância, o INEC contribui para aprofundar o debate sobre moda regenerativa no Brasil. Com base em análises, reflexões e na troca de experiências, o Instituto defende que o setor têxtil pode deixar de ser visto apenas como símbolo de desperdício e se tornar um espaço de inspiração para provar que a circularidade produtiva pode ganhar escala. 

 

*Raíssa Pinati é especialista em Economia Circular pela Universidade de Cambridge e MBA em ESG pela FGV
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